Já entrevistei um garoto de programa.
A idéia surgiu depois que tive um conto selecionado (e posteriormente publicado em livro) num concurso nacional. No texto eu mencionava um “casal” atípico: um garoto de programa e um travesti. Metido que sou, achando que poderia escrever algo mais longo sobre o “tema”, ou melhor, julgando-me capaz de escrever um romance tendo um garoto de programa como protagonista (não, não haveria o travesti), pensei em empreender uma espécie de pesquisa de campo — já que dar vida e densidade a tal personagem, na minha opinião, não seria apenas questão de mera imaginação, como ocorreu no conto. Acredito que em literatura — na minha pelo menos — para captar e transmitir a verdade do personagem eu preciso SER este personagem. Claro que não literalmente, mas se eu souber como pensa e sente essa “criatura” posso muito bem me colocar na pele dele literariamente. Não confundam literalmente com literariamente. Eu sabia que entrevistar somente um garoto não me forneceria dados suficientes, pois eu teria apenas uma visão parcial. Pensei que cinco rapazes me dariam um material significativo para que eu absorvesse, fundisse e sintetizasse as impressões obtidas. Mas cada coisa em sua hora: eu precisava saber primeiro como me sairia neste intento.
Não foi complicado encontrar um ponto de partida. Surpreendente a quantidade de resultados obtidos quando digitei “garoto de programa” num desses buscadores de Internet. Difícil foi achar entre a infinidade de ofertas alguém que disponibilizasse um endereço de e-mail, já que todos utilizavam celulares — e eu não queria que meu telefone ficasse registrado no aparelho de ninguém. Enfim encontrei um, que anunciava: “Para o seu prazer! 25 anos, 1.70m, 70kg, totalmente másculo, discreto, segurança e sigilo total. Alto nível, falo idiomas. Venha relaxar e sentir prazer de verdade. [nº. do celular]. Fotos mais ousadas por e-mail.” A imagem que ilustrava o anúncio mostrava um rapaz meio sem-graça enrolado numa toalha branca numa pose sensual muito parecida com a de São Sebastião (sem as flechas, obviamente). Enviei um e-mail, criado somente para isso, dizendo que estava começando a escrever um livro e deixando clara a minha proposta: apenas uma entrevista, nada além disso. Eu marcava um encontro no centro da cidade e perguntava quanto ele me cobraria. Depois de enviar a mensagem, pensei: “O cara vai me achar um verdadeiro maluco. Será que vai me responder?” Ele não só não deve ter me acho tão louco, como não demorou nada para me mandar uma sucinta resposta: “Aceito! R$ 50,00”.
Nesta época eu trabalhava no centro do Rio, e quando contei aos amigos no escritório que entrevistaria o garoto eles mal puderam acreditar. Acharam que eu era maluco, que o cara podia me assaltar, bater em mim, etc. Eu mesmo já havia pensado nisso, mas tendo marcado o encontro num lugar público achei que não correria grandes riscos. Por via das dúvidas, resolvi levar apenas pouco mais do valor que ele havia me cobrado. Em casa, eu tinha elaborado um questionário que me parecia pertinente, mas diante da curiosidade dos amigos no trabalho sobre o que eu perguntaria ao rapaz, achei que eles também poderiam colaborar com novas questões. Foi ótimo, pois o questionário acabou se enriquecendo enormemente.
Admito que à noite, depois do trabalho, diante do Teatro Municipal (local do encontro), eu estava um tanto apreensivo. Deveria mesmo ir até o fim daquilo? Ainda tinha dúvidas. Mas elas se dissiparam quando avistei o garoto junto ao poste: tão baixo e franzino que relaxei. Como as fotos podem ser enganadoras!… Ele me recebeu amistosamente, mas me pareceu tão apreensivo quanto eu antes de vê-lo. “Achei que você não ia aparecer… e que eu ia perder a viagem. Você nem me deu o seu telefone!”, falou para mim. Pelo visto, devia ter vindo de longe. Fomos a um fast food decadente que eu já sabia estar sempre às moscas — seria necessário um mínimo de privacidade para tal entrevista. Nesta hora, me ocorreu que o garoto poderia facilmente me enganar dizendo um monte de mentiras em troca do dinheiro. Como saber a verdade? Tarde demais. Paguei um lanche que justificasse nossa presença no local e subimos ao piso superior, totalmente deserto, como imaginei.
Não perdi tempo. Enquanto ele sorvia o milk shake duplo e comia o sanduíche triplo, tirei a papelada da pasta e desandei a perguntar. Para minha surpresa, ele não só não hesitou em resposta alguma (e havia muitas perguntas constrangedoras — pelo menos para mim), como ainda forneceu detalhes que iam muito além do indagado. Não tive dúvida: o garoto foi sincero o tempo inteiro. Uma sinceridade revestida de desilusão, descontentamento, conformidade.
Eu até poderia contar resumidamente a história dele aqui, mas isso só faria este post ficar ainda mais longo. O curioso é que a história do garoto, em linhas gerais, era semelhante a que eu havia imaginado. Depois de tantas perguntas indiscretas e tantas respostas honestas, fiquei me sentindo estranho. Não era uma história alegre, como eu supunha, mas estar frente a frente com o protagonista daquela narrativa verídica, às vezes sórdida, às vezes bizarra, às vezes humilhante, me deixou triste. Como ignorar aquela realidade infeliz personificada em gente? Por outro lado, fiquei admirado com sua coragem em se aventurar num mundo que sempre me soou um tanto arriscado, em vários sentidos. No fundo, fiquei com pena do garoto, e se tivesse levado mais algum dinheiro o teria dado de bom grado — embora isso não resolvesse o “problema” dele. Paguei o que ele havia pedido e nos despedimos cordialmente.
Posso estar enganado, até porque só fiz uma entrevista (suportaria fazer mais quatro?), mas a sensação que conservei desse episódio foi um tanto negativa, apesar de certa admiração. Tentando me vestir de personagem, senti angústia, solidão, vergonha, nojo, medo… O garoto me confessou que, apesar do dinheiro que ganhava por mês (bem maior que o salário mínimo) e do prazer que às vezes sentia, se pudesse ele abandonaria aquela vida imediatamente. Mas havia agora tanta coisa em jogo… e ele esperava ganhar a partida.
O livro, ou o que deveria sê-lo, foi engavetado — não tanto pelas demais entrevistas não realizadas, mas talvez pelo outro protagonista que dividiria a cena com o garoto (alguém muito mais complicado e “perigoso” de entrevistar, sobretudo se eu dissesse a finalidade da entrevista). O que me parece certo é que, embora se tenha a impressão de que oferecer o corpo em troca de dinheiro seja algo relativamente “fácil”, uma atividade que exige pouca prática (ou muita cara-de-pau), o saldo dessa transação, por maior que seja o “lucro”, nem sempre é positivo. Não deve ser nada agradável se sentir uma mercadoria apta a atender desejos de estranhos.
Certa vez, num programa de TV, vi um especialista sobre prostituição masculina finalizar a matéria com uma frase que me pareceu perfeita para sintetizar o “drama” desse ofício ou situação. Não sei se vale para todos os garotos de programa, mas certamente deve servir para muitos: “A venda do corpo cobra o preço da alma”.
Não há um motivo específico para o assunto deste post. Apenas me lembrei dessa história (antiga) e achei interessante contá-la.