Não me lembro exatamente da primeira vez em que ouvi falar de Simone de Beauvoir, mas lembro muito bem do meu primeiro contato com sua escrita, em Os Mandarins, no início dos anos 90. O romance me causou tanto impacto, me deixou tão impressionado com estilo, forma e conteúdo que senti uma vontade imediata de conhecer toda sua obra, e tudo o que pudesse saber sobre sua vida.
“Devorei” Os Mandarins — um calhamaço de 900 páginas — em quadro dias, e só não o terminei em menos tempo por não querer que aquele “prazer” acabasse depressa. Nenhum livro antes havia conseguido me cativar — e mexer comigo — a tal ponto. Naquela época, eu não ignorava o que era o Existencialismo, pois já tinha lido alguma coisa de Sartre, mas Simone apresentava esta filosofia de modo tão natural, compreensível e sedutor que foi impossível para mim não me interessar também por esta “modalidade” de encarar a vida.
Não foi difícil dar vazão ao meu desejo de tudo ler e tudo saber sobre Beauvoir: além de uma significativa obra literária havia uma extensa autobiografia, sem contar os ensaios. Um prato cheio que tive grande prazer em degustar. O interessante de seus romances é que eles quase sempre são “transposições” (da vida real para a ficção), o que lhes confere um realismo digno de estudo. Em suas memórias, Simone se transforma em “personagem” a fim de, usando a própria vida, comunicar suas experiências pessoais, seus fracassos, suas conquistas, e também as mudanças ocorridas no mundo em que vivia. Seus ensaios, dentre os quais O Segundo Sexo, a “bíblia” do feminismo (obra que mudou definitivamente o papel da mulher na sociedade ocidental), são trabalhos fundamentados em pesquisas tão extensas quanto minuciosas. Quanto mais eu “descobria”, mais fascinado ficava. Desse modo, não levei muito tempo para ter um conhecimento razoável sobre a autora e sua vida, bem como para me dar conta de que Beauvoir havia mudado radicalmente meu jeito de pensar — o que acabou se refletindo no meu modo de viver.
Na verdade, eu poderia dizer que meu desejo de escrever seriamente teve origem com a leitura dos livros de Simone — ainda que eu só tenha conseguido escrever algo a sério bem mais tarde. Eu gostava tanto do que lia que alimentava a vontade de poder, um dia, fazer algo semelhante: um texto capaz de agradar a outros (ainda que o conteúdo não fosse necessariamente agradável). Não sei ainda se obterei êxito nessa empreitada, mas — correndo o risco de parecer pretensioso — creio que minha escrita foi fortemente influenciada, sobretudo, pela literatura existencialista de Beauvoir.
Com a publicação póstuma de alguns diários e de boa parte de sua correspondência, Simone começou a ser “desmistificada” — para decepção de muitos de seus admiradores. Para mim, ao contrário, cada nova informação só faz com que Beauvoir me pareça mais e mais humana, o que, de certo modo, a torna mais próxima, mais admirável. Há quem se choque com a verdade, ou com o fato de Simone não ter dito TODA a verdade, como às vezes afirmava. A mim tudo parece bastante claro: algumas verdades simplesmente não podiam ser ditas em determinadas épocas, ou por envolverem terceiros ou por serem extremamente pessoais. O que me parece certo é que Simone desejava que o que ela não pôde dizer de viva voz ou escrever de próprio punho viesse à tona um dia, talvez quando já não pudesse “prejudicar” ninguém. Por isso instruiu sua filha adotiva (e herdeira de sua obra literária) a publicar postumamente anotações em diários e cartas — que permitiram a seus biógrafos preencher algumas lacunas e corrigir certos episódios. Entretanto, nada do que possa ainda ser revelado afetará, na minha opinião, a importância do legado de Beauvoir.
Em meados deste ano, recebi a incumbência de administrar uma comunidade sobre Simone num desses sites de relacionamento. Confesso que eu nem participava tanto como membro, mas achei interessante a oportunidade de, talvez, modificar o perfil do grupo oferecendo um pouco mais de informação e proporcionando troca de idéias. Apesar de minhas tentativas, fiquei com a impressão de que a maioria dos participantes continuava sem saber quem havia sido Beauvoir e qual sua importância, principalmente para as mulheres.
Eu já havia feito um site bastante simples, que contava, muito resumidamente, alguns fatos sobre a vida e obra da autora francesa. Levando em consideração o que havia percebido na comunidade, achei que estava na hora de atualizá-lo não só em relação ao formato, mas também em termos de conteúdo. E o fiz. Foram praticamente quatro meses em que me dediquei a pesquisar, ler, reler, traduzir, escrever, conceber e realizar o novo site. O resultado final me agradou bastante, e posso dizer, sem modéstia, que não existe em língua portuguesa (e nem em estrangeira) um espaço online mais completo sobre Simone de Beauvoir. Não sei se a intenção de “divulgar” e fazer com que minha autora favorita não “caia no esquecimento” aqui no Brasil surtirá efeito, mas acredito que por tudo o que ela me proporcionou — e ainda proporciona! — era o mínimo que eu poderia fazer. Uma pequena homenagem, mas muito sincera.
Para conhecer o site, clique no link abaixo:
dezembro 5, 2006 at 1:23 am
AaaaaaaaaaaH, não acredito! Temos então uma coisa muito forte em comum, também amo este livro por tudo que vc falou. Olha isso:
Sexta-feira, 26 de setembro de 1947*
Nelson, meu amor,
Foram só vinte e três horas até Paris, aportamos às 6h, amanhecia. Eu estava muito cansada depois de duas noites sem dormir, bebi café e tomei dois pequenos comprimidos para me manter acordada durante o longo dia. Paris estava muito bonita, um pouco nevoenta, com um céu cinza, suave, e o aroma das folhas mortas. Fiquei muito contente ao descobrir que tinha muito a fazer aqui, tanto que só devo ir para o campo o mês que vem. Primeiro, o rádio dá ao Temps Modernes uma hora inteira a cada semana para falar sobre o que quisermos, da maneira que quisermos. Você sabe o que significa a possibilidade de chegar a milhares de pessoas e tentar fazer com que eles pensem e sintam do modo que acreditamos seja correto pensar e sentir. Isso tem de ser manejado com muito cuidado, e hoje de manhã tive uma espécie de conferência para falar sobre o assunto. Segundo, o Partido Socialista quer nos consultar sobre a possibilidade estabelecer uma conexão entre política e filosofia. Parece que as pessoas começam a acreditar que as idéias são algo importante. Terceiro, havia inúmeras cartas de todos os tipos e muito trabalho para tocar na própria revista. Eu estava feliz, quero trabalhar, trabalhar muito. A razão por eu não ter ficado em Chicago é essa minha eterna necessidade de trabalho, de dar sentido a minha vida pelo trabalho. Você tem a mesma necessidade, e essa é uma das razões pelas quais nos entendemos tão bem. Você quer escrever livros, bons livros, e, aos escreve-los, ajudar o mundo a ser um pouco melhor. Eu também quero isso. Quero transmitir às pessoas minha forma de pensar, que creio ser a verdadeira. Eu devia desistir das viagens e todo tipo de diversão, devia desistir dos amigos e dos encantos de Paris a fim de poder ficar para sempre com você; mas não poderia viver somente de felicidade e amor, não poderia desistir de escrever e trabalhar no único lugar em que minha escrita e meu trabalho talvez faça sentido. O que é bastante difícil, pois, como lhe disse, nosso trabalho aqui não é muito promissor, e o amor e a felicidade são coisas tão verdadeiras, tão seguras. E, no entanto, ele tem de ser feito. Entre as mentiras do comunismo e do anticomunismo, contra essa falta de liberdade que grassa quase em toda França, algo deve ser feito por pessoas capazes e que se importem com a situação. Meu amor, isso não cria nenhuma divergência entre nós; pelo contrário, eu me sinto bem próxima de você nessa tentativa de lutar por aquilo que julgo verdadeiro e bom, seguindo seu exemplo. Mas, ainda assim não pude evitar o choro convulsivo esta noite, já que passei momentos tão felizes com você, amei-o tanto e agora uma distância enorme nos separa.
Sábado – Estava tão cansada que dormi 14 horas, só acordei uma vez durante a noite para pensar em você e chorar mais um pouco. De tanto chorar, estava tão feia esta manhã que, ao cruzar com Camus na rua, ele me perguntou se eu não estava grávida: segundo ele, minha cara não deixava dúvidas!
*Essa carta foi escrita por Simone de Beauvoir a Nelson Algren. Ela descreveu seu longo e apaixonado relacionamento com ele em seu romance Os Mandarins (1954). Simone tinha 39 anos quando se encontraram , estava envolvida com Sartre e escrevia O Segundo Sexo. Pelas primeiras páginas do livro e da carta fiquei tão identificada que posso dizer que entrei num momento Beauvoir… Adoro quando um livro acompanha minha vida e quando minha vida acompanha um livro… Adoro me fantasiar!
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Ah, tem mais: Bíblia é no sentido de manual… E os céticos adoram escrever manuais, não seguir. Aguarde próximos capítulos e descobrirás quem são os verdadeiros céticos uha-rá-rá-rá!
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Pois é, Narizinho, como eu disse, uma das coisas que mais me agrada nos livros de Beauvoir é que ela aproveitava acontecimentos de sua própria vida para criar suas histórias — que acabavam sempre sendo bastante realistas, por mais ficção que houvesse na trama. É verdade que Sartre foi o amor da vida de Simone, mas a paixão foi Algren.
Você leu o livro das cartas de Beauvoir para o Nelson?
dezembro 5, 2006 at 2:51 am
Coincidentemente “Os Mandarins” foi também meu primeiro livro de Beauvoir. Mes espanto foi um pouco diferente do seu. Eu tinha 17 anos e era o ano de 1956. Nessa época “mocinhas” não liam essas coisas. Mas a professora de literatura francesa mandou ler, e as famílias tiveram que concordar. Li depois as “Memórias de uma moça bem-comportada”, que mexeu muito comigo, pois narrava uma infância e adolescência semelhantes à minha. Mas o que mais gostei foi “A convidada”. Depois fui tomando antipatia pela Simone pessoa, embora ainda chegasse a ler “O segundo sexo”. Os dois livros que você me emprestou recentemente, “Une mort heureuse” (é esse mesmo o título?) e as cartas para Algren me fizeram ver uma Simone diferente daquela mulher cheia de certezas, até arrogante, que me fizera tomar distância de seus livros. Mas essa outra Simone, menos sabichona, me fez sentir que eu fora enganada, que tudo não passara de uma pose.
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Deve ter sido mesmo interessante ter podido ler Os Mandarins quando ele estava ainda tão “fresco”, Sonia. Ainda mais tendo esse componente quase “proibido”. O nome correto do livro em que Simone narra a morte de sua mãe é “Une Mort Très Douce” (ou Uma Morte Muito Suave).
Sobre a “pose” da Simone pessoa, eu nunca a vi assim — talvez por ter lido praticamente tudo dela e sobre ela, não sei. O que me parece certo é que num mundo completamente machista e dominado pelos homens, Beauvoir precisou “construir” uma personalidade forte o bastante para suportar todos os embates (e eles não foram poucos). Sem contar que ainda existia uma certa “competição” com Sartre. Não deve ter sido nada fácil para ela… mas as dificuldades, longe de desestimulá-la, pareciam servir mesmo para fazê-la seguir em frente.
dezembro 5, 2006 at 2:33 pm
Eu li O Segundo Sexo e Memórias de uma moça… Os Mandarins nunca me arrisquei – e nem acho que vá. Sobre ela, a mulher, nunca quis saber nada, ao contrário de você, prefiro mantê-la num pedestal. Faço isso com todos os escritores que admiro, não sei bem o motivo… Coloquei o site aqui nos favoritos, em casa olho com calma. Beijinhos.
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Camille, cada um tem um jeito particular de “lidar” com seus ídolos. Eu sou um tanto obsessivo neste ponto: quando um escritor me agrada eu TENHO que saber tudo sobre ele. Aliás, o que eu acho mesmo interessante é justamente fazer com os autores que admiro desçam do tal pedestal: quanto mais humanos eles forem, mais próximos de mim estarão (sou ou não sou esquisito?).
Espero que você goste do site, mesmo que não queira saber nada sobre a pessoa de Beauvoir.
Beijo.
dezembro 5, 2006 at 2:45 pm
Ah, Wagner, se nao existe outro site tao completo, entao vamos traduzi-lo, oras!!!! (Olha eu procurando encrenca…hehehe).
beijos!
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Não sei se entendi muito bem seu comentário, Carla. O site que fiz está em português. É verdade que há vários artigos em francês (alguns dos quais pretendo traduzir na medida do possível), mas o restante está todo em nosso idioma. Aliás, a intenção era justamente esta. Se puder me explicar o que quis dizer…
Beijo!
dezembro 10, 2006 at 5:12 pm
olá senhor wagner. sim! cá estou na então desconhecida “blogosfera”, rsrsrs…. ainda sem mt atitude, mas estou. minha vó comentou a dificuldade de pessoas q naum são do meu mesmo provedor em deixarem seu link nos comentários, mas tb falou q conseguiu dar uma driblada nisso. ainda naum sei se consiguirei sobreviver por aqui, já q os mundo dos blogueiros é tão cheio de hábitos e etc, mas… vou tentar. bjs, fica bem.
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Irene, não deixa de ser verdade que transitar pela blogosfera requer que determinados “hábitos” sejam adotados… mas o interessante é que você pode criar seus próprios hábitos. Espero que você não desanime tão cedo, e que tire algum proveito dessa “experiência”.
Beijo!
dezembro 12, 2006 at 11:50 pm
Nossa! E eu ainda não li os Mandarins…Vou tentar reparar a falha assim que puder. Li outros de Beauvoir e também gosto muito. Vou lá visitar o seu site.
Abraços
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Espero que você goste de “Os Mandarins”, Leila. Foi graças a este livro que Beauvoir ganhou o Prix Goncourt de 1954. Espero também que você goste do site.
Beijo.
dezembro 19, 2006 at 2:31 pm
Semanas depois…
Wagner, eu entendi que nao havia sites mais completos em nenhuma lingua, exceto frances. Entao brinquei que deveriamos traduzir pra outras linguas, ingles, espanhol… Entendeu?
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Agora entendi. E, puxando a brasa ainda mais para o lado da minha sardinha, nem mesmo em francês — pasme! — existe algo mais completo que o meu site. Em todo caso, eu não poderia contruibuir com as traduções: além de não estar capacitado a tanto, isso daria um trabalho danado!
Beijo.