As Brasas

Eu já havia lido outro livro de Sándor Márai, Divórcio em Buda, que admito não ter gostado muito: o texto criou em mim uma expectativa que não se cumpriu — o que me deixou com aquela estranha sensação de que faltou algo, de que alguma coisa se perdeu ao longo da narrativa.

Por conta disso, não me senti muito animado diante de As Brasas, do mesmo autor, que recebi de presente de uma amiga — ainda mais quando soube que o tema era, de certo modo, semelhante ao de Divórcio em Buda. Mas esse preconceito caiu por terra desde que li as primeiras páginas. Aliás, da metade do livro até o fim não consegui parar de ler, tão fascinado fiquei com a história, com a narrativa. O texto é de uma elegância e fluidez digna de estudo (pelo menos na minha opinião). O protagonista, um velho general do Império Austro-Húngaro, é tão bem construído que minha afeição por ele foi imediata. E não só a construção do personagem principal, mas também dos ambientes e de toda uma época — ainda que servindo apenas como pano de fundo — são de tal qualidade que, para mim, foi impossível não me sentir fazendo parte de tudo. Curiosamente, não há excesso algum de detalhes neste aspecto, apenas o essencial para que o leitor se situe no tempo e no espaço.

Em seu castelo na Hungria, o general Henrik, de 75 anos, recebe a notícia de que um antigo e inseparável amigo de infância e juventude, Konrad, está na cidade e deseja visitá-lo. Eles já não se vêem há 41 anos — 41 anos e 43 dias, para ser mais exato. O general contou cada um desses dias desde a abrupta e incompreensível separação. Na verdade, Henrik acredita mesmo que só continuou vivo por que sabia que esse “confronto” ainda aconteceria.
Na véspera do dia em que o general e Konrad se viram pela última vez, um episódio tão inesperado quanto surpreendente envolve os dois amigos durante uma caçada — pelo menos essa é a forte impressão de Henrik: teria mesmo seu amigo pensado num ato tão irreparável? E por que não o consumou? Tudo alucinação? Não, o general sabe que algo muito grave aconteceu — ainda que não consiga precisar o quê. Algo que muda profunda e definitivamente a vida dos dois amigos.
Durante o tempo em que estiveram afastados, Henrik não conseguiu deixar de ruminar em nenhum momento o enigma daquele dia fatídico e tudo o que decorreu a partir dele. Tão sozinho quanto incansável, o general busca respostas, quer descobrir o que realmente aconteceu, e o porquê do ocorrido. Em vão, pois acredita precisar de um interlocutor que lhe diga a verdade, uma única pessoa: Konrad. E eis que agora, no fim da vida, chega o momento do confronto há tanto esperado e que vai desengrenar de uma vez por todas a existência estacionada de ambos. Para tanto, o general pede que preparem um jantar de gala para seu único convidado, e — talvez para prosseguir do ponto em que haviam deixado suas vidas em suspenso — procura reconstituir com rigorosas minúcias todo o ambiente em que se encontraram pela última vez, no mesmo castelo, no mesmo salão, na mesma mesa de jantar. Apenas um detalhe desfalcará da perfeita reconstituição: Krisztina, a falecida esposa do general.

Não vou me alongar para não revelar demais a quem talvez tenha interesse no livro. Mas o “ajuste de contas” entre Henrik e Konrad é um dos textos mais belos que já tive oportunidade — e prazer! — de ler. A forma coerente com que o general disseca a amizade é impressionante — e, ironicamente, quanto mais ele procura esmiuçar esse sentimento, menos temos certeza do que ele pode significar. Em sua obsessão por respostas, Henrik atravessa a madrugada inquirindo quase impiedosamente seu convidado, tão insistentemente que mal dá chance a Konrad de dizer o que gostaria de ouvir — se é que pretendia mesmo ouvir o que já não soubesse…

Apesar de a história se passar no início do século XX, e de o romance ter sido publicado em 1942, o livro continua atualíssimo, pois aborda como temas a amizade, o amor e a honra — sentimentos que, sabemos bem, não se deixam aprisionar pelos caprichos do Tempo.